Imagem retirada do livro “Saborosos quitutes de Mamãe Dolores”

Mamãe Dolores era o apelido dado a toda mulher negra e robusta nas décadas de 1960 e 1970. Na época, achava-se que era um elogio associar a pessoa ao personagem central da famosa novela “O direito de Nascer” representada, no Brasil, por Isaura Bruno[1] (1964) na TV Tupi.

Isaura começou a trabalhar como empregada doméstica em casas de família. Em 1949 trabalhava como cozinheira na casa do escritor Orígenes Lessa quando uma amiga, doméstica em uma casa vizinha, a indicou para o patrão, que procurava alguém com seu perfil para atuar em um filme.

O vizinho era Walter Foster e Isaura estreou como atriz no filme “Luar do Sertão” (1949), onde interpretou a bondosa empregada Flausina. Trabalhou em filmes, novelas e programas de televisão até a década de 1970. Sem convites para atuar, escreveu três livros de receitas, e em 1971 gravou um disco culinário onde ensinava receitas.

Essa história nos remete às cozinheiras brasileiras e suas receitas. Não nos aprofundando nas questões de cunho racial e racista, quero me ater nas questões culinárias, familiares.

A figura da cozinheira estava presente nas casas, seja a cozinheira contratada, seja a própria dona da casa quem manuseava os alimentos dando-lhes formatos e sabores característicos.

As receitas eram várias, doces, salgadas, licores, sucos… Para cada época, para cada fruta, para cada ingrediente, receitas criativas.

Eram comuns, nas cidades do interior paulista – segundo minha própria experiência de vida – as trocas de receitas culinárias entre as chamadas “comadres”. Depois do almoço, no café da tarde, as mulheres se reuniam para conversar e invariavelmente trocavam receitas culinárias.

Dalí surgiam muitos quitutes deliciosos que experimentavam e trocavam. Sim. Faziam as receitas e trocavam os resultados…

Os cadernos de receitas tinham, ao lado do nome da receita, o nome de quem deu. Assim, o quibe da Elsa, o sorvetão da Zina, o pãozinho da Duzolina, a esfirra da Emely, iam povoando e acrescentando “vida” às listas de ingredientes e modos de fazer…

Às receitas tradicionais de família, iam acrescentando observações do tipo: ficou muito doce; vão muitos ovos; ninguém gostou… E assim por diante. Esses cadernos contam a história da culinária brasileira, suas influências, suas transformações e os modismos de cada época.

Cajuzinhos, geleias de pinga, beijinhos e brigadeiros povoavam as festinhas infantis. Bolo de reis, enrolado de nozes, panetone da vovó, faziam a festa nos finais de ano. Bolo leque, bolo cesta de flores, parreira de uva passa recheada, fios de ovos, eram constantes nas festas de casamento.

Tudo feito pelas donas da casa ajudadas por suas amigas e cozinheiras. A festa começava com as escolhas dos quitutes, depois com a feitura deles e acabava numa grande confraternização.

Mamãe Dolores foi uma das cozinheiras que nos influenciaram. Dona Benta, Tia Anastácia, Ofélia e tantas outras também nos brindaram com a arte de sua cozinha.

O centro de uma casa ainda é a cozinha. É ali um lugar de troca, de bate-papos, de confidências, de amizades. É ali, ao redor da mesa, com o cafezinho na garrafa térmica e alguns biscoitinhos de nata que construímos nossa história, que registramos e preservamos nossos costumes.

Cozinhar, oferecer alimento, dividir experiências, trocar, nos dá a consciência de pertencimento e nos torna mais unidos.

 

[1] Foi umas das primeiras a interpretar, na TV, a Tia Nastácia, de Monteiro Lobato e a primeira negra a protagonizar uma telenovela. Seu primeiro trabalho foi no filme Luar do Sertão, em 1949.

 

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