Farofa de iça: cultura de comer formiga foi herdade dos indígenas. Foto: Arquivo Pessoal

Consigo visualizar com muita clareza a imagem da minha avó
Benedita tapando sol com a mão e olhando na direção do astro depois dele ter
ressurgido, após uma chuva típica de primavera-verão – forte, rápida e recheada
de fortes trovoadas.

“Estamos em outubro, na época das içás. Se os formigueiros
‘estouraram’, olhando contra o sol veremos as asinhas brilhantes delas voando
no céu”, dizia. Era pura sabedoria popular que eu, ainda criança, aprendia lá
em meados da década de 1990.

Mais de 20 anos depois, o ciclo natural se repete mais uma
vez. Chuva, trovões e o sol voltando a brilhar. E lá estão elas, as
“tanajuras”, sobrevoando o céu e colocando as famílias pra fora de casa – nos campos,
pastos e ruas – para garantir a iguaria.

“Frei Ivo d’Evreux, na Maranhão de 1612, viu as aldeias despovoarem-se para a caçada às saúvas olorosas e havia canções propícias para atraí-las”, relata Luis da Câmara Cascudo no livro “História da Alimentação do Brasil”.

Lembro do quanto era divertido correr atrás das formigas com
uma camiseta nas mãos, tentando derrubá-las no chão para depois colocar num
saco de arroz – que é mais grosso e difícil do inseto rasgar com seus ferrões.

Os mais velhos e corajosos iam até os formigueiros de onde
as iças saiam e as pegavam antes mesmo de alçarem vôo. Para não serem picados
nos pés pelas centenas de formigas saúvas que criavam uma rede de proteção em
volta dos formigueiros, eles colocam uma bacia com água e mergulhavam os pés –
às vezes calçados com botas de borracha – dentro.

Depois de uma tarde de muito corre-corre e algumas centenas
de formigas capturadas, tinha mais trabalho. A família toda reunida para limpar
as içás, retirar as asas, os ferrões e as perninhas. Já limpas, elas iam para a
frigideira para serem fritas com óleo e sal. Depois de fritas, era só acrescentar
a farinha. Estava pronta a farofa de içá.

Farofa de iça do Restaurante do Ocílio com cerveja artesanal produzida na Bocaina em homenagem à iguaria

Devo confessar que também acho o cheiro das iças fritas
forte, como muitos primos e amigos que não gostam da içá insistem em reforçar,
mas prevalecem a crocância e o sabor sem igual, 
“de cravo com laranja”, como define Cascudo, que me lembra muito minha
infância e me fazem ser viciado até hoje nessa iguaria. E não sou o único.

Passeando pelo mercado municipal de Taubaté no último final
de semana, vi diversos feirantes vendendo garrafas pets cheias de içá. Com
sorte, a quantia chega a ser vendida por mais de R$ 100.

Lá no Vale Histórico, mais precisamente em Silveiras, ao longo de todo ano turistas de diversas regiões do Brasil e até de fora do país visitam o Restaurante do Ocílio, especializado no preparo das formigas, para saborear a iguaria. 

A cultura de comer as tanajuras foi herdada dos indígenas e
não é uma necessidade, ainda que as formigas sejam uma reconhecida fonte de
proteínas. Quem come, o faz por prazer. Não à toa Monteiro Lobato a chamava de
caviar dos caipiras.

Restaurante do Ocílio

www.facebook.com/MateusGontijoGAraujo

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