Sou café com leite.
Quando o assunto é gastronomia, sou um zero à esquerda. Ainda não há um estudo confiável a respeito do tema, porém é bem provável que eu seja o ser humano com a menor capacidade culinária em todo o planeta. É sério. Represento para a cozinha o que o Cigano Igor representa para a dramaturgia. Duvida? Bom, eu já queimei miojo. E não foi uma vez só. A minha casa ficou toda esfumaçada. Também já errei a mão outras vezes, tentando fazer pizza e outras receitas básicas. Não sei se é realmente possível, mas acredito já ter queimado café.
Já como consumidor, com o garfo e a faca nas mãos, tenho algumas características que me tornam persona non grata na cozinha de qualquer chef. Carne? Bem passada, por favor. Frutos do mar? Prefiro farofa, e como prato principal. Também tenho sérias restrições ao estrogonofe e não entendo como o homem, capaz de ir à Lua ou de inovações tecnológicas incríveis, coloca a uva passa no arroz nas festas de Natal. Por quê?
Papai Noel deveria evitar as casas em que há presença do citado ingrediente (não repetiremos mais o nome dele neste espaço) – e isso inclui até mesmo os panetones. A pena? Seria assistir, na íntegra, toda a temporada do programa ‘João Kléber Show’, na Rede TV, com revelações como: ‘namorado revela que é reencarnação de Michael Jackson’, ‘marido treina pulgas para realizar o sonho de trabalhar no circo’, ‘mãe revela ao pai que filho se chamará Youtube’ e também, falando em culinária, ‘Fabiana usa samambaias da vizinha para fazer salada’, entre outros. Mas para, para, para!
Bem, dito isso, por incrível que pareça, meus amigos André e Renata me convidaram para ser um dos colunistas do Degusta Vale. Sim, não faz sentido. É como Donald Trump escrever sobre guacamole, chilli, tortillas e a importância de construirmos pontes ao invés de muros.
Por isso optei por batizar a coluna com o nome de ‘Café com Leite’, expressão usada nas brincadeiras de rua para designar aquela criança que não tinha, digamos, grandes habilidades motoras. Mas eu mereço uma chance. Apesar de não saber cozinhar, gosto de comer.
E mais do que isso. A proposta aqui é falar sobre memórias. Lembranças saborosas, com o tempero e ingredientes das boas histórias. Tendo a cozinha como pano de fundo.
Vejo nossas lembranças como lâmpadas mal encaixadas. Sabe? É, aquelas que precisam só de uma rosqueadinha a mais e pronto, voltam a ser luz. Essa chave para reabrir uma memória é, muitas vezes, representada por um cheiro, uma imagem, uma melodia… um sabor.
Aqui, neste espaço, vou compartilhar com vocês algumas dessas histórias. Umas apimentadas, outras doces e saborosas. Prometo evitar os textos sem sal, ok? A ideia é dividir experiências, com bom humor e fazendo novos amigos. É uma ótima receita.
Como dizia o poeta, nada é mais universal que o rio que corre atrás da minha aldeia. Então, a intenção é que as histórias sejam de vocês tanto quanto elas são minhas.
Tá servido? Espero que apreciem o menu.
Um beijo a todos e inté 😉
P.S. O primeiro texto falará sobre o melhor café do mundo, feito pela minha avó Nívia.
O Café da Dona Nívia
Depois do almoço, antes de irmos para a escola, minha avó Nívia nos reunia na sala, diante do quadro de Jesus Cristo. Julio, Marina, Malu e eu, perfilados, e prontos para a benção da vovó. Ela rezava e depois fazia o sinal da cruz, dizendo a cada um que estávamos protegidos, como se vestíssemos uma espécie de armadura invisível. De fé. Recordo-me que saia dali, a caminho do colégio da Unitau, me sentindo protegido. Como um cavaleiro medieval (o que, para uma criança, é algo muito legal, convenhamos).
Outro dia, caro leitor, escrevi sobre as ruas por onde andei. Elas continuam lá, mas não as vejo. Só existem dentro de minhas lembranças, afinal a cidade muda. Tudo muda. Uma loja nova aqui, um prédio acolá e coisas assim transformam os cenários da nossa vida. Mas ali, na casa da Dona Nívia, o tempo parece ter parado para tirar um cochilo demorado — depois de ter provado aquele delicioso cafezinho da minha avó!
A maior parte da casa ainda é igual aquela onde eu cresci. A sala continua lá. Os sofás, a mesa de centro, a estante com os nossos porta-retratos, o velho cinzeiro com o mapa do Brasil, os quadros, etc. Tudo continua lá. No mesmo lugar.
Ali, sentado em uma daquelas poltronas, passei tardes e tardes ouvindo as histórias contadas pelo meu avô, o doutor Hélcio, sobre futebol, a Segunda Guerra Mundial ou como ele lutou pelo tratamento da água em Cruzeiro nos anos 60, batendo de frente com os poderosos da cidade na época — essa é a minha preferida. E as histórias continuam lá.
Tem também a cozinha, onde a comida tem o tempero mais gostoso do mundo. Hum… arroz com feijão, polenta, bife e salada, entre outras iguarias. A mesa é a mesma. Os armários também, assim como a parede de azulejos e a área de serviço. Quando eu era moleque, a despensa era certamente um dos meus lugares favoritos. Lá sempre havia uma garrafa de Coca-Cola ou Guaraná pronta para saciar nossa sede. E uma caixa de Bis pronta para saciar nosso vício por chocolate.
A netaiada tinha o costume de brincar de caça ao tesouro (nesse caso, o Bis). Um ficava responsável por esconder a caixa e deixar pistas pela casa, um belo sobrado rosa claro — cor preferia da minha avó. Os outros procuravam os bilhetes e tentavam desvendar as pistas, para encontrar a prenda. Mais divertido do que isso só o Natal. Bom, aí era a maior festa! O saco com presentes era escondido em algum lugar da casa, para que nós saíssemos à procura dele. Uma vez a minha irmã achou muito prontamente — o que gerou nos outros netos um questionamento: será que ela viu alguém escondendo? Não, ela sempre sustentou que descobriu o esconderijo porque viu o Papai Noel saindo pela janela…
Bom, a casa tem ainda outros lugares que eu adoro, como a biblioteca e os quartos do andar de cima. Certa vez, há alguns anos, estava meio para baixo e saí de casa para andar por aí. Meus pés, a bordo de um velho All Star azul, me levaram até a casa da minha avó. E, como em um passe de mágica, me senti bem.
Acredito que todos nós temos um pouco de farol e de barco à deriva. Aquele sobrado cor de rosa, ainda igual ao que era no meu tempo de menino, me dá a certeza de que, por mais revolto que esteja o mar, existe um porto seguro. Aconteça o que acontecer. Afinal, nunca vai haver café tão bom quanto o da minha avó!
P.S. 1: Em visita à casa da minha avó, no Dia dos Pais, ela me levou à sala de tevê. Lá, mostrou um saquinho plástico, onde guardava todas as minhas crônicas.
P.S.2: Esta crônica foi publicada no jornal em que trabalho. Entreguei um quadro para minha avó, com o PDF da página e ela ficou toda contente. Dois dias depois, ela passou mal e foi levada para o hospital. E poucos dias depois acabou nos deixando. Aquele encontro, para a entrega do quadro, foi uma despedida.
P.S. 3: Ainda hoje, sempre que saio da minha casa para ir trabalhar, tenho o costume de fazer o sinal da cruz e pedir a proteção. Como fazíamos nos tempos de colégio, bem diante do quadro de Jesus, perfilados na sala da Dona Nívia.